O vozerio das buzinas aumentou lá na avenida. Eram dezoito horas. Leovino trabalhara feito máquina. Em seu estômago, uma dor. Em seu peito, um peso medonho e, em sua garganta, um nó. Fechou as gavetas, ajeitou a camisa e vestiu o paletó.
- Boa noite, até amanhã!
- Amanhã é sábado colega; até segunda!
Nem se lembrava de que já era sexta e de que não trabalhava ao sábado. Foi-se embora. Misturou-se com outras gentes que, nas ruas, tinham os olhos tão perdidos em pensamentos e lugares, os quais, cada um sabe dos seus. E a massa toda foi andando, capengando, se arrastando pelas ruas.
De repente, o guarda apitou e o semáforo mandou:
- VERMELHO! PARE!
Na calçada, de corpo rígido, com as mãos nos bolsos não contendo nada, portando um peito que contém a dor, Leovino já não se contém e começa a subir, saindo de seu próprio corpo. Seu espectro voa, voa, voa alto, bem alto, acima da rua, acima dos prédios, dos tédios, acima das nuvens e, espiral, acima de tudo – que vento gostoso – começa a descer, mansamente, mansamente, até o chão. Um chão sem asfalto, um chão de quintal. E pergunta-se a si mesmo:
- Que lugar é este?
- Essa grama, essas árvores, aquela casa, aquela rua! Tenho que perguntar a alguém. Que lugar é este?
Leovino está perdido e não está. Não conhece o lugar, mas sabe os caminhos. Pega uma trilha em meio às ervas-cidreiras e aos alecrins e se dirige para o fundo do quintal. Ouve um cantarolar de criança e acelera o passo.
- Como é grande este quintal!
- Um menino brincando de fazer bolinhas de barro! Vou perguntar-lhe que lugar é este.
- Ei, garoto! Por favor, que lugar é este?
O garoto não responde. Parece nada ter ouvido. Continua cantarolando “Marcha Soldado” com os olhos fixos nas bolinhas de barro.
Era um garoto esquisito. Leovino fica observando. Aproxima-se e para em sua frente gesticulando com as mãos, mas o menino continua brincando e cantando, como se nada visse ou ouvisse.
Surdo não era, pois estava cantando. Cego também não era pois, das bolinhas, passou a fazer um belo boneco de barro.
Leovino tenta pegá-lo pelo braço. Sua mão atravessa o vácuo, como se o menino fosse vento, luz ou nada. Mesmo assim, Leovino não se assusta, afinal era uma criança tão bonita e ele precisava saber que lugar era aquele. Aproxima-se sem medo, por trás do garoto, e grita-lhe ao ouvido:
- Menino, que lugar é este?
- É o meu quartel-general! – Responde o menino, sem tirar os olhos do boneco que agora construía.
- O que você está fazendo? – Insistiu Leovino.
- Estou fazendo uma estátua de mim.
Leovino se apercebe de que o garoto não o vê e talvez não o ouça, no entanto, responde às suas perguntas como se conversasse sozinho. Leovino se recorda de que, em criança, também conversava sozinho; e prossegue:
- Por que você faz uma estátua de você mesmo?
- Eu preciso de uma estátua por causa do tempo e de mim mesmo – responde o garoto, dando os retoques finais em sua obra e como se com ela falasse.
- Bem, agora é só deixar secar e esperar que não rache ao crescer.
Dizendo isto, o garoto se levanta e caminha para a trilha de ervas-cidreiras e alecrins. Leovino tenta detê-los aos gritos:
- Garoto, espere! Espere por favor!
- Não posso. Preciso ir ver minha mãe, para que você não rache ao crescer. Só as estátuas de meninos que nunca esquecem de suas mães é que não racham ao crescer – responde o menino, como se o bonequinho de barro fosse quem fizera o apelo.
Leovino tenta agarrá-lo novamente. Mas é pego de surpresa no tempo e no espaço. Num segundo só, amanhece e anoitece dez vezes. E o último lampejo daquela armadilha de dias e noites é u’a manhã. Manhã em que, na frente da casa, há um menino triste e uma rua deserta.
- Ei, garoto! Muito triste?
- Estou triste de ser eu, porque hoje errei. Mas, alegre de não ser outro; senão, como saberia que errei?
- Fez coisa errada e se arrepende?
- Sim e não. Só peso e analiso meus atos. Estou aprendendo de mim mesmo.
- Como?
- Achei um ninho com ovos num local ermo e de ninguém. Levei os ovos para casa pois, se achados, eram meus. Minha mãe olhou-me nos olhos e meus olhos em meu coração. Foram feitas perguntas ao meu cérebro:
- Os ovos achados são meus? – Não!
- Por que não? – Pergunta Leovino.
- Os quintais são abertos, mas as galinhas têm donos. Ovos não andam, mas chocam. Devolvi os ovos ao ninho. Terei sido tolo?
- Ontem mesmo fui tolo – recorda-se Leovino a sorrir – Obrigado meu Deus!
- Obrigada meu Deus, foi o que disse aquela velhinha, quando a galinha fujona retornou ao seu quintal com um bando de pintainhos.
- Leovino sorri como se nunca estivesse só.
Escurece e amanhece outra vez.
É no cerrado. Está tudo triste. O sol está morno, o mato está mudo e o vento parou. Um menino enterra seu cão.
Depois de beijar a terra, cobre com ela o rosto do amigo. Dá forma de tumba ao buraco, enfeitando-o com flores de japodi e ramos de maria-moreira[1]. E chora.
- Era só um cachorro. Mas foi meu amigo.
- Tira os sapatos e os enche de pedrinhas pontudas. Torna a calçá-los e sai pisando firme.
- Menino, por que isto?
- Pelo amigo que se foi.
- Para que?
- Por sua alma.
- Cão tem alma?
- Dizem que cão não tem alma... e se tiver? Foi meu amigo. O que posso fazer pelo amigo, faço. Ele faria por mim.
Leovino se lembra do velho Pery e de outros amigos. Sorri como se não estivesse só. Segue o garoto pela linha do horizonte quando, num instante, lhe foge aos pés o cerrado e suas vistas, num piscar de olhos, se ofuscam noutro lugar.
Era uma casa brilhante com janelas de cristal. Um portão de aço e bem alto se abre. Sai de lá cabisbaixo o garoto.
- Triste de novo, menino? – Pergunta Leovino.
- Um pouco.
- Por quê?
- Destratei com o Juca, meu sócio de bolinhas de gude.
- Como foi?
Ele tinha bolinhas compradas; nunca soube jogar. Cruzamos os dedinhos e ficamos sócios. Jogamos alto e ganhamos todas as bolinhas da vila. Ninguém mais tinha bolinhas. Ficaram só as da loja e as nossas. As da loja, Juca comprou-as todas e, com as nossas, queria enterrá-las todas no fundo de uma cisterna velha.
- E daí?
- Ao invés de vender minha parte, desfiz os dedinhos com Juca. Desafiei-o na biloca, na batida e no triângulo. Depois de dois dias de jogo, ganhei-lhe a última bolinha. E, do tesouro, fiz o que devia ser feito: aleluia aos meninos da vila.
- E está triste?
- Um pouco. Não sou mais o rei das bolinhas e o Juca não mais me pagará sorvetes. Mas fico alegre, porque o jogo das bolinhas não acabou e os meninos da vila ainda têm esse brinquedo.
Leovino se lembra das muitas vezes que disse não e das muitas chances que perdeu na vida. Mas sorri aberto, como quem nunca esteve sozinho.
Com a manhã nos olhos desce a rua, seguindo o garoto em direção ao sol. No fim da rua Leovino descobre:
- Esta rua, essa casa, aquela grama e aquelas árvores... eu sei que lugar é este!
- Ei, garoto! Espere!
O garoto não espera. Abre o portão e vai para o fundo do quintal. Leovino o segue pela trilha de ervas-cidreiras e alecrins e, estupefacto, constata: o boneco de barro crescera. O garoto o olha cara a cara e se aproxima; e se aproxima até sumir no corpo de barro do boneco, como se fosse um nada.
Pé ante pé, Leovino se aproxima do boneco. Fita-o cara a cara, como se olhasse no espelho. E, num de repente, já não sabe de que lado do espelho está. Olha-se no espelho e vê um adulto. Olha-se em si mesmo e vê um menino. E, como tal, senta-se ao chão fazendo bolinhas de barro e cantarolando “Marcha Soldado”.
- É o meu quartel-general!
Leovino está feliz como um garoto. E num piscar de olhos faz um boneco, beija a mamãe, devolve os pintainhos, enterra seu cão e dá vivas às bolinhas de gude!
- Hoje tem goiabada!
- Tem sim senhor!
É o circo que passa. É o menino que corre, seguindo a alegria que some cantando no fim de sua rua.
O circo vai embora e fica o silêncio; e um menino sentado à sombra da árvore, na beira da rua. E, naquela árvore, à beira da rua, um sabiá põe-se a cantar, como se soubesse que nunca estivera só
Leovino/Menino assobia, respondendo ao sabiá:
- FIUUUUU! FIUUUUU! FIUUUUUUUU!
O guarda apitou e o semáforo mandou:
- VERDE! SIGA!
E, então, como sempre às sextas-feiras, naquele mesmo semáforo, um homem atravessa a rua pulando numa perna só e vai-se embora brincando de pular amarelinha nas listras do calçadão.
Que Deus o proteja. E que a segunda-feira o veja.
[1] Nomes regionais (Uberaba-MG) de uma flor silvestre e de plantinha rasteira do cerrado que fecha suas folhas ao ser tocada.
Obs.: Este conto, escrito em abril de 1980, foi o primeiro colocado no “III Concurso Literário” da então Fundação Itauclube, do Banco Itaú, em 14 de junho de 1980 e, depois, publicado em jornal do próprio banco, com distribuição para todas as suas agências no Brasil.